Sobre as estrelinhas na testa

O Mundo de Oz já tem seus 6 anos e pouco e sempre mantive nele um sonho ainda não realizado. Torná-lo um blog regular. Nos qual eu pudesse colocar minhas reflexões a respeito do mundo que nos cerca e nos envolve dia após dia.

No entanto a vida cotidiana, os muitos trabalhos simultâneos, a preguiça inerente e o hábito de deixar para depois (me foge agora a palavra específica pra isso… logo logo eu lembro), tornaram esta tarefa impossível até hoje. Embora pareça que este texto faz uma marcação de um novo tempo, um novo período histórico onde farei com que este blog se torne enfim algo que valha a pena abrir dia após dia para uma leitura crítica do mundo. Não. Não se iluda querido leitor, querida leitora. Esta é apenas mais uma tentativa de colocar este plano infalível em prática, mas que já nasce morta. Afinal escrevo no final do semestre onde duas das duas escolas que leciono (além da universidade) concluem seus trabalhos e deixam os professores e as professores completamente atolados. Parece até que fazem as férias de Julho ficarem mais “merecidas”.

“Merecidas”, merecimento, mérito, meritocracia. Palavra tão usada no dia-a-dia das escolas ao redor do mundo. Não só nas escolas, mas estando a sociedade como um todo tão impregnada desta praga, é comum que os estudantes, desde muito novos carreguem consigo os efeitos desta desgraça.

Minha enteada está no segundo ano do ensino fundamental, primeira série do modelo antigo. Já sabe ler, escrever e está fazendo cálculos mentais que deixa muita gente grande de boca aberta ;-). Contudo, chega dia após dia da escola e relata que ganhou ou deixou de ganhar uma estrelinha por bom comportamento. Esta é a realidade de muitas escolas públicas. Sua professora não tem culpa da formação que teve, que pouco deve ter criticado este sistema meritocrático de pontuação/premiação que só eleva aqueles que já trazem uma bagagem ou “bom comportamento” de casa e afunda, amplia, aumenta o estigma daqueles que são chamados de “maus alunos”, “bagunceiros” etc. A versão antiga deste sistema incluía até estrelinha na testa. Uma simbologia muito forte para todos os participantes da experiência antropológica (a saber: aqueles que podiam ver a estrela e aqueles que não podiam vê-la, já que estava colada na testa).

Eu fiz pré-escola. Aos 6 anos de idade fui matriculado na escolinha da Tia Maria, na Vila Joaniza, zona Sul de São Paulo. A única experiência que me sobrou na lembrança, ainda vívida, foi justamente um desastre meritocrático.

Certa vez chegou na escola uma conjunto de mesa e cadeiras novas, aquelas com seis lados. Pois bem, os estudantes ficaram muito eufóricos afinal queriam trocar aquelas mesas puídas por aquela nova que acabara de chegar e que ao que tudo indica tornaria as lições muito mais agradáveis. A decisão da professora foi certeira. NINGUÉM VAI SENTAR NELA HOJE! Aquilo foi uma tortura. Um filme de terror para um bando de crianças carentes sedentos por novidades. A resolução dela incluía um adendo: Só sentará lá o mais comportado do dia.

Creio que já estão adivinhando o final… A timidez que sempre preencheu meu ser da cabeça aos pés (agora menos), a enorme dificuldade que eu tinha de interagir com outro ser vivente, fez com que eu fosse o “mais comportado” daquela sala.

Porra nenhuma! Ela apenas confundiu “incapacidade de comunicação” com bom comportamento!

O resultado desta desastrosa experiência antropológica foi eu sentado sozinho na cadeira/mesa nova, enquanto todos os demais me olhavam com ódio e desprezo (tanto quanto esses sentimentos são possíveis para crianças de 6 anos de idade).

Esta semana, lecionando numa turma de ensino médio percebi uma conversa paralela entre os estudantes. Quase todos muito indignados com o fato de um dos colegas ter sido assaltado e perdido seu IPhone. Interrompi a aula de física para fazer uma conversa sobre o assunto, afinal ele faria muito mais sentido naquele momento.

A opinião padrão eles poderiam ter aos montes por aí, na TV, em casa, na rua e entre eles mesmos, de que um vagabundo desocupado roubou o fruto do trabalho honesto de alguém. Pois bem, me ofereci para dar minha opinião e uma forma um pouco diferente de ver as coisas. Eu mesmo falei que seria uma forma mais complexa.

“Entendo a raiva de vocês. Não os culpo por isso. Mas acho que entendo ainda mais aquele que roubou o celular. A mídia, a sociedade de maneira geral vai dizer que era um vagabundo. Que não estudou porque não quis, que não aproveitou as oportunidades que teve, que não se esforçou o bastante. Pois bem, convido vocês a pensar em quais oportunidades ele teve? Alguns vão pensar que estou falando isso porque o celular não era meu. Então vamos pegar um exemplo meu mesmo.Há alguns meses levaram minha bicicleta. Pedalo com bike speed e elas custam de 2 mil para mais.

É óbvio que fiquei puto quando fui buscar a bike e não encontrei mais. Mas depois deste primeiro momento, foi fácil me sentir bem por ter sido aquele que foi roubado e não aquele que roubou. Não é fácil olhar o lado desta pessoa e entender todas as suas não-oportunidades. Ela não estudou em colégio de elite, muitos sequer estudaram. Não tiveram livros na estante, não tiveram família estruturada, não tiveram emprego, apoio do governo.. MAS… foram convidados a agir como qualquer outro cidadão da sociedade. Seguindo leis e regras que aquelas que tiveram tudo isso seguem.

Entendo a raiva de quem perde algo que gostava. Mas sentir isso é fácil. Difícil é entender que todo o sistema trabalha para excluir muitos em troca do enriquecimento de poucos.”

As palavras praticamente escorregaram da boca… E eu não me senti culpado por estar fazendo esse discurso. Afinal, como eu disse no começo, o discurso contrário está em todos os lugares, mídia, internet, rua etc.

É claro que a meritocracia não acabará pela conscientização das pessoas. Ela é um produto direto do capitalismo. É natural deste sistema. Sendo assim, seu fim está intimamente ligado ao fim dos sistema opressor que nos cerca e nos consome: o sistema capitalista. Assim podemos deixar a estrela na testa apenas para quem fica bem com ela lá, a Mulher Maravilha talvez…

 Protelar!!! (a palavrinha que fugiu de mim lá em cima)

5 comentários

  1. Primeiro… Vida longa ao blog!

    Ter, manter um blog mesmo que não tão ativo, o ato de transpor em escrita nossas ideias é uma terapia! Parece ser a materialização dos que antes só estavam em pensamentos… E nos ajuda a crescer 🙂

    Depois, sobre o roubo… Nem tanto ao mar, nem tanto ao céu… A pobreza não pode atenuar a ambição e sem grandes sacrifícios… Em muitas das vezes receberam sim a chance de estudar, de fazer um curso que lhes dê uma profissão… Mas querem tudo sem esforço… Há também um lado de que já existe um “mercado” de peças com esses celulares roubados… O que ai entra também aquele que compra… De qualquer forma o querer ter além das próprias posses não pode ser desculpa para roubar de outro… O consumismo não deve se perpetuar! É cada vez mais, mais pessoas aderindo ao ter apenas o essencial…

    Bom final de semana!

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